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sexta-feira, 2 de julho de 2010

A mudança cultural, a mudança de era e o fim da liderança na era da co-inspiração.


[O texto abaixo é um trecho extraído de:] 

Sustentabilidade ou harmonia biológico-cultural dos processos?

Todo substantivo oculta um verbo.

Ximena Davila, Humberto Maturana, Ignacio Muñoz & Patricio García

http://www.globalforum.com.br/uploadAddress/Comentario%20Reflexivo%20Libro%20Proposiciones%20Provocativas_port[60634].pdf


[Feita revisão do texto para facilitar leitura: quebra de frases longas, alterações de posição de verbos... Se houver percepção de mudança de significado, em função destas alterações, agradeço comentários - Claudio]

[Texto revisado em:

A mudança cultural, a mudança de era e o fim da liderança na era da co-inspiração.

Vejamos a dinâmica envolvida na mudança cultural. À medida que uma cultura, como maneira de viver humana aparece à nossa observação como uma rede particular de conversações, podemos ver que sua dinâmica constitutiva é uma configuração particular de coordenações de coordenações de ações e emoções (vg. como entrelaçamento particular da linguagem e do emocionar). E podemos ver então que uma cultura surge quando uma comunidade humana começa a conservar geração após geração uma nova rede de coordenações de coordenações de ações e emoções como sua maneira própria de viver, e desaparece ou muda quando a rede de conversações que a constitui deixa de se conservar. Portanto, para entender a mudança cultural, devemos ser capazes: tanto de caracterizar a rede fechada de conversações que, como prática cotidiana de coordenações de ações e emoções entre os membros de uma comunidade particular, constituem a cultura que essa comunidade vive. Como de reconhecer as condições de mudança emocional sob as quais as coordenações de ações de uma comunidade podem mudar de modo que surja nela uma nova cultura.

Para isso é indispensável compreender o fundamento emocional do ser cultural; à medida que crescemos como membros de uma cultura. Crescemos em uma rede de conversações participando com os outros membros dela em uma contínua transformação consensual que nos submerge em uma maneira de viver que nos faz, e parece espontaneamente natural. Ali, à medida que adquirimos nossa identidade individual e nossa consciência individual e social, seguimos como algo natural o emocionar de nossas mães e dos adultos com os quais convivemos, aprendendo a viver o fluxo emocional de nossa cultura que torna todas nossas ações, ações próprias dela. Nossas mães nos ensinam, sem saber, e nós aprendemos delas, na inocência de uma coexistência não refletida, o emocionar de sua cultura, simplesmente vivendo com elas. O resultado é que, uma vez que crescemos membros de uma cultura particular, tudo nela nos parece adequado e evidente, e, sem percebermos, o fluir de nosso emocionar (de nossos desejos, preferências, rejeições, aspirações, intenções, escolhas...) guia nosso agir nas circunstâncias mutantes de nosso viver, de maneira que todas nossas ações são ações que pertencem a essa cultura.

É através da reflexão realizada até aqui que propomos ver a evolução do humano abstraindo, do que sua história biológico-cultural nos mostra, as sensorialidades e emoções fundamentais que a guiaram. Contudo nos centralizaremos fundamentalmente na última era por razões de espaço [9]. Assim falaremos de eras psíquicas mostrando as configurações do emocionar do viver cotidiano que segundo nosso parecer caracterizaram distintos momentos da história humana como distintos espaços psíquicos ou distintos modos de habitar nos que se deram, e de onde se deram, todas as dimensões do conviver relacional.

O conviver relacional foi vivido em cada instante de cada era psíquica em um presente em contínua mudança na que o fluir do emocionar surgia momento a momento do fundo histórico-operacional e filosófico-epistemológico imperante. O que dizemos com esta afirmação é que em cada momento da epigênese histórico operacional que configura as distintas eras psíquicas da humanidade, o ser humano conservou distintos desejos, teve distintos gostos e preferências cujo fundamento foi determinado momento a momento pelo habitar do presente que se vive.

As distintas eras psíquicas da humanidade se correspondem, segundo nosso pensar, com a dinâmica histórica de transformação integral da psique humana, desde sua concepção, passando pela infância, pela juventude, pela condição adulta e pela madureza reflexiva, que configura nelas, em cada instante, o como se vive. Onde se orienta e como se entende a natureza e o sentido do humano em seu pertencer à biosfera. Este transcorrer ocorre, na visão mítica, da vida humana, desde a concepção até seu término, na maturidade, como uma dinâmica recursiva. Na qual a sabedoria da maturidade leva ao início de uma nova história psíquica na geração seguinte, que pode ser mais desejável, porque implica a possibilidade da repetição do ciclo, mas com um deslocamento ampliado da consciência em uma maior coerência com o mundo natural. O suceder das eras psíquicas da humanidade de que falamos aqui, realiza um ciclo mítico, e possibilita um espaço reflexivo que no fundo é conhecido e re-conhecido através do próprio viver no conviver. Este suceder de eras psíquicas da humanidade vai desde a Era arcaica na origem do humano, à Era ‘pós-pós-moderna’, já citada antes, como uma era na qual se recupera a consciência e as ações perdidas no transcorrer histórico do pertencer humano à biosfera que é a existência de fundo na qual é possível e ocorre o humano. O recuperar desta consciência, em coerências sistêmicas, torna possível abrir e ampliar o olhar sistêmico recursivo que é constitutivo do humano como um ser vivo que pode refletir sobre seu próprio viver e os mundos que gera nesse viver.


Era psíquica arcaica:

Dinâmica emocional fundamental: o amar como um suceder espontâneo.

Esta Era nos fala da origem do humano na origem da família como um modo permanente de conviver na intimidade do prazer e do bem-estar, psíquico- corporal-relacional. Surge assim o ‘linguagear’ e o conversar como um modo de conviver na intimidade relacional nas coordenações de fazeres e emoções: Homo sapiens-amans: Presença espontânea do amar.

Surgimento da linhagem humana na conservação do conversar de uma geração a outra na aprendizagem das crianças.

Homo sapiens-amans amans: Presença da conservação do amar.

Nesta Era vivemos a história evolutiva da linhagem Homo sapiens-amans e suas ramificações possíveis em três linhagens: Homo sapiens-amans amans, Homo sapiens-amans agressans e Homo sapiens-amans arrogans. Estas três linhagens teriam surgido como linhagens culturais das quais o único atual como linhagem biológico-cultural que se conserva é a linhagem Homo sapiens-amans amans. Se não tivesse sido conservado em nossa deriva evolutiva o amar como uma linhagem biológico-cultural, não teria sido conservado o Homo sapiens-amans amans, e teríamos desaparecido. Só conservando o bem-estar psíquico-corporal que se conserva no amar, os seres humanos do presente conservarão o viver.

As outras duas linhagens, se tivessem evoluído como linhagens biológico-culturais, teriam sido extintas, apesar de ainda surgirem com certa freqüência como linhagens culturais transitórias.

A linhagem Homo sapiens-amans agressans ocorre em um conviver que conserva as cegueiras da agressão.

A linhagem Homo sapiens-amans arrogans ocorre em um conviver que conserva as cegueiras da arrogância.


Era psíquica matrística:

Dinâmica emocional fundamental: o amar como um conviver desejado.

Esta é a Era do devir do Homo sapiens-amans amans: a forma fundamental de convivência é a de grupos pequenos que colaboram nas atividades do compartilhar o viver cotidiano unidos na sensualidade, ternura e sexualidade como um âmbito de bem-estar. Este bem-estar psíquico-corporal surge de maneira espontânea, não surge da reflexão e sim de um modo de viver e conviver em coerência com o mundo natural. A atitude cotidiana é a da colaboração no viver cotidiano, em busca do alimento, do cuidado das crianças, uso de instrumentos, enfim, em um modo de viver cultural que abre o espaço para a co-inspiração e que não dá cabida à conservação da dominação e a submissão e onde a agressão é um acontecimento ocasional que não guia o  conviver.

Nesta era vivemos a geração de mundos culturais e o conhecimento dos mundos que se vivem.

Surgem culturas matrísticas, centradas em relações de colaboração e co-inspiração.

Amplia-se a consciência da unidade do existir.

A extinção das linhagens agressans e arrogans se produz pela restrição da consciência da unidade do existir que resulta das cegueiras relacionais que geram os âmbitos emocionais de agressão e arrogância. As linhagens que surgem na expansão da agressão e da onipotência como um viver cotidiano cultural, vão rumo à sua própria extinção porque destroem a si mesmos e o meio biológico que os torna possíveis. Isto teria acontecido com as formas de viver Homo sapiens-amans agressans e Homo sapiens-amans arrogans como linhagens biológico-culturais autodestrutivas quando através da agressão e da arrogância entraram na dinâmica da expansão hegemônica. Estes modos de viver apareceram muitas vezes em eras posteriores durante nossa história patriarcal (Era da apropriação) sob a forma de fanatismos e impérios que geraram sua própria extinção com a dor humana e/ou o dano ambiental que produziram em um viver através das cegueiras que produzem a agressão e a arrogância.


Era psíquica da apropriação:

Dinâmica emocional fundamental: veneração da autoridade.

É a Era do despertar da consciência manipulativa na expansão da habilidade manual e explicativa no fazer e no viver que abrem o sentir ao se apropriar do e dos mundos que vão surgindo no conviver. Perda da confiança nas coerências espontâneas do mundo que se vive e expansão do desejo de controle. Ao surgir a apropriação, vão aparecendo alguns modos de conviver na apropriação e na discriminação, e com a discriminação surgem as culturas centradas em relações de dominação, submissão,  hierarquia, e negação de si mesmo e do outro na autoridade e na obediência.

Linhagens culturais de Homo sapiens-amans agressans e arrogans.

No momento que se perde a confiança nas coerências espontâneas do mundo aparece o medo e a insegurança e a emoção guia nesta era é a desconfiança, o controle e o poder, que buscam o domínio sobre as coisas e sobre Deus.

Acreditando recuperar através do controle e do poder a confiança nas coerências do mundo que se vive.


Era psíquica moderna:

Dinâmica emocional fundamental: domínio da autoridade e a alienação no poder.

É a Era da expansão do saber da ciência e da tecnologia: conhecimento, apropriação e domínio do mundo que se vive porque se pensa e sente que este é dominado.

Vivemos na confiança em que podemos conhecer direta ou indiretamente o em si dos mundos que vivemos, e confiança em que o conhecimento do mundo ou dos mundos que vivemos dará validade universal a nossos argumentos e afirmações cognitivas. Age-se na crença de que o conhecimento gerará bem-estar na humanidade.


Era psíquica pós-moderna:

Dinâmica Fundamental: Domínio do Conhecimento.

É a era da dominação da ciência e da tecnologia: podemos fazer tudo o que imaginamos se operarmos com as coerências operacionais do domínio em que o imaginamos. Somos onipotentes, somos deuses no fazer, nós, seres humanos, somos instrumentos para a realização de nossos desígnios. Vivemos na hegemonia da liderança: apropriação da verdade, fanatismo, alienações ideológicas, na inovação, na manipulação, desonestidade. Vivemos a geração de dor e sofrimento na ‘antroposfera’ e na biosfera.  Também nos movemos em nosso viver na busca da eternidade e prisão na solidão psíquica da alienação da onipotência.


Era psíquica ‘pós-pós-moderna’:

Dinâmica emocional fundamental: Surgimento da reflexão e ação ética conscientes.

É a Era da dor e sofrimento da ‘antroposfera’ e da biosfera que a alienação na onipotência gera abre o espaço para a reflexão e para o surgimento da consciência das alienações ideológicas e tecnológicas, e da dor e sofrimento que geram.

É a era em que surge a responsabilidade ética na ‘antroposfera’ e na biosfera através da ampliação da consciência de que somos nós mesmos quem geramos as dores e sofrimentos que vivemos na‘antroposfera’ e na biosfera.

Começamos a viver no fim da liderança: abre-se o caminho para a reflexão-ação ética, ressurgimento da honestidade e o desejo de colaborar e co-inspirar.

Surge a consciência e entendimento da matriz biológico-cultural da existência humana que gera, realiza e conserva o humano como gerador do cosmos que vivemos como o âmbito relacional e operacional no que se dá o presente de nosso viver.

Vivemos as seguintes dimensões psíquicas:

Consciência e desejo da reflexão-ação ética.

Consciência de pertencer à ‘antroposfera’ e à biosfera.

Consciência de cuidado e responsabilidade da biosfera e da‘antroposfera’.

Então, a era moderna é a era do fazer e do conhecer, a era na que se tornam aparentes as capacidades humanas nos âmbitos do fazer e do explicar científico; a era na que os seres humanos se encontram com capacidades tecnológicas que lhes abrem portas de ação antes só imaginadas. A era pós-moderna é a era do entendimento; a era na que percebemos que podemos fazer qualquer coisa que imaginarmos se operarmos com as coerências operacionais do âmbito relacional em que o imaginamos; a era na que percebemos as conseqüências do que fazemos, as não nos comprometemos a agir de acordo com essa consciência. Entretanto, as conseqüências do que fazemos estão aí, podemos vê-las, ouvi-las, tocá-las, senti-las. O fato de não nos omprometermos a agir de acordo com a consciência que temos, por apego a nossas certezas, porque desejamos conservar de maneira consciente e inconsciente a onipotência de acreditar que podemos fazer qualquer coisa que quisermos conservando as coerências operacionais no domínio onde quisermos, ou seja, o apego pelo poder e pela onipotência, leva-nos ao caminho do mal-estar. E é através deste espaço psíquico que começa a era ‘pós-pós-moderna’.

E começa quando percebemos que sabemos o que sabemos que sabemos e que entendemos o que entendemos que entendemos, e ao mesmo tempo percebemos que esse saber que sabemos que sabemos, e esse entender que entendemos que entendemos nos compromete com a ação; a era em que somos conscientes de que se não agirmos de acordo com o que sabemos que sabemos, mentimos a nós mesmos e mentimos a outros, inclusive a nossos filhos: quando se sabe que se sabe não se pode fingir que não se sabe sem estar mentindo.

A era  ‘pós-pós-moderna’ surge como a era da consciência ética em nosso viver e conviver, pois sabemos o que sabemos, de que entendemos o que entendemos, o que nos compromete com a ação. Contudo não nos compromete com qualquer ação,  compromete-nos com uma ação consciente e responsável de que as conseqüências de nossos atos não prejudiquem os outros, a era em que não queremos continuar nos enganando.

Gostaríamos de dizer também que a era  ‘pós-pós-moderna’ ou a era da ética no viver e conviver é a era que gera um espaço operacional-relacional onde nós como seres vivos e seres humanos em particular nos sentimos mais à vontade, mais em casa dado que nossa ontologia constitutiva se orienta a viver e conviver como seres alegres, harmônicos na conservação do bem-estar. É esta a era onde queremos viver em maior coerência com o mundo natural, é a era que nos coloca no centro de nosso ser seres amorosos.

Enquanto agora sabemos que sabemos das conseqüências que nosso fazer tem no âmbito humano e ecológico que surge com nosso fazer, e agimos de acordo com esse saber que sabemos, estamos transitando a era ‘pós-pós-moderna’. Na era  ‘pós-pós-moderna’ estamos sendo mais conscientes do que teríamos que fazer na conservação da ‘antroposfera’ e da biosfera de modo que se gere e conserve nelas o viver humano no bem-estar e em harmonia psíquica e operacional com outros seres vivos através do respeito pela legitimidade de sua existência. Passamos à era  ‘pós-pós-moderna’ quando percebemos que a seriedade, a eficiência, e a criatividade socialmente responsável em qualquer atividade se expandem em uma comunidade na que se vive no mútuo respeito e na autonomia na colaboração. Ao passar à era  ‘pós-pós-moderna’percebemos ainda que isto acontece em uma comunidade humana quando seus membros sentem que o que fazem tem sentido porque eles lhe dão sentido com seu vivê-lo, essa comunidade é uma comunidade ética.

Mas, como agir? Qual é a conduta adequada para gerar esse conviver na espontaneidade de nosso sentir? Qual é a conduta adequada para realizar o trânsito para a era  ‘pós-pós-moderna’ e conservar a espontaneidade da responsabilidade social cotidiana? O que deve ocorrer na alma do quefazer das atividades produtivas? O que deve ocorrer na alma da atividade empresarial que abriu a possibilidade para esta mudança de era com tanta dor e sofrimento na ‘antroposfera’ e na biosfera, para que esta mudança de fato aconteça? Sabemos que tem que acontecer, e sabemos também que em geral se no tivermos de forma imediata um proceder adequado à mão para fazer o que desejamos fazer, sempre poderemos conceber e realizar um tal proceder, se quisermos.

Isto é, sabemos ao passar à era  ‘pós-pós-moderna’ que não é falta de imaginação ou de capacidade tecnológica o que nos impediria criar uma atividade adequada para gerar o conviver no bem-estar que queremos, seja qual for a circunstância, mas sim que é o não desejar fazê-lo.

Por que o Fim da liderança? [10]

Vivemos um presente no qual distinguimos nas pessoas desejos de bem-estar, alegria e harmonia com o mundo natural. Ao mesmo tempo em que distinguimos muita dor e sofrimento em toda a humanidade. Riquezas e misérias que nos levam a nos perguntar como estamos fazendo nosso viver que no momento de mais potencial criativo e capacidade de ação de nossa história, geramos tanta dor em muitos no meio do bem-estar de poucos. Convidamos a olhar, a saber olhar nosso presente, e façamos isso sem temor e sem pretender ocultar o que vemos. O que vemos?

Sabemos que com nosso viver geramos continuamente o mundo que vivemos. E que o mundo que geramos em nosso viver modifica recursivamente nosso viver e nosso conviver, constituindo uma‘antroposfera’ que como trama ecológica do conviver humano surge como parte integral da biosfera, em uma dinâmica recursiva que não se detém nem se deterá, salvo com nossa extinção. Nestas circunstâncias se olharmos o presente que vivemos poderemos ver o surgir da era  ‘pós-pós-moderna’ na crescente presença em nosso conviver cotidiano de reflexões e considerações ecológicas e éticas. Reflexões e considerações ecológicas e éticas que surgem em uma mudança de consciência através do saber que sabemos que o bem-estar na ‘antroposfera’ só pode surgir e ser conservado como um ato cotidiano individual de criatividade em nosso conviver.

A atividade empresarial não é nem pode existir alheia a esta mudança de consciência, pois esta surge, em boa medida, como resultado das mudanças no habitar humano que sua presença traz consigo, na ‘‘antroposfera’’. De fato, atualmente nenhuma  comunidade humana é possível sem as atividades produtivas empresariais tanto porque estas são agora parte intrínseca do âmbito ecológico da ‘antroposfera’ que vivemos, como pela transformação global da própria biosfera que foi surgindo como resultado sistêmico [11] da conservação de seu operar. Nesta transformação da ‘antroposfera’ e da biosfera a magnitude da presença da atividade empresarial e a magnitude das conseqüências dessa atividade em nosso viver e conviver humano torna necessário refletir sobre o caráter dessa atividade como um aspecto de nosso conviver cotidiano.

A atividade empresarial sob a noção de livre empresa e livre mercado é vista como uma atividade que, por surgir de uma iniciativa privada, pode ser chamada privada, ainda que em um sentido estrito sempre tem conseqüências públicas na comunidade em que surge, que a torna possível, e que a sustenta. Entretanto, mesmo que qualquer atividade empresarial como uma atividade que ocorre no fluir do viver e conviver de uma comunidade humana participa ao mesmo tempo destas duas dimensões relacionais (privadas e públicas), neste momento fazemos notar a ênfase que no presente é posta na separação do privado e do público como se se tratasse de relações opostas e excludentes.

Assim, acontece que agora, nos encontramos em um presente histórico no qual se espera que a criatividade dos membros de uma empresa esteja orientada mais ao lucro que ao bem-estar das comunidades internas e externas que a tornam possível. E mais, isto ocorre sem que se reconheça que, na transformação da‘antroposfera’ e da biosfera que as empresas geram, a tarefa central das empresas é agora essencialmente de serviço público. E sem ver que a orientação ao lucro constitui um curso que arrasta a‘antroposfera’ ao descalabro ecológico e humano. Sabemos deste último dado há muito tempo, mas só há pouco tempo estamos aceitando que sabemos que o sabemos.

A satisfação dos vícios pelo lucro e pelo poder da era pós-moderna requer que os planejamentos que fazemos dêem certo. E para que isso aconteça se requer impecabilidade na realização do planejado. E para que o planejado aconteça se requer das pessoas que participam de sua realização que não cometam erros, não mudem de opinião, não tenham iniciativas que não foram consideradas; em suma se requer que sejam conduzidas como robôs. O maravilhoso dos robôs é que, salvo erro em sua construção, acidente relacional ou erro em seu uso, comportam-se de forma impecável e previsível conforme seu design.

Os seres vivos em geral, e os seres humanos em particular, não são assim, não são robôs. Os seres humanos querem pensar, refletir, mudar de opinião, ter iniciativa, participar do que fazem. Querem ser vistos e escutados como seres inteligentes e criativos. De fato, quando nos encontramos em um âmbito profissional, no qual se quer operar, na certeza de que serão obtidos os resultados desejados. Conforme especificados em algum projeto particular, procura-se fazer qualquer coisa para assegurar que aqueles que participarem da realização desse projeto ajam com plena precisão, conforme o que se considera que seja o procedimento adequado para obter esses resultados. Isto é, queremos projetar a conduta de nossos “colaboradores” e empregados com prêmios, castigos, e argumentos racionais de modo que se comportem conforme nossas especificações. Enfim, queremos que eles se comportem como robôs multidimensionais em quem podemos confiar.

Reconheçamos ou não, esta é a tarefa da liderança. Contudo a efetividade de uma liderança, qualquer que seja sua denominação (amigo, acolhedor), sempre dura pouco tempo porque as pessoas querem ser partícipes criativos, E se não forem logo se cansam, aborrecem-se, e querem outra coisa. A liderança requer que os liderados abandonem sua própria autonomia reflexiva e se deixem guiar por outro confiando ou se submetendo a suas diretrizes ou desejos, seja por se sentirem inspirados, o por temor a perder alguma coisa sem acesso à queixa ou à pergunta reflexiva. Entretanto, a inspiração nas atividades de um grupo não dura na ausência de participação criativa, e tanto as queixas como as perguntas reflexivas não podem ser detidas  indefinidamente sem que surja frustração, raiva ou apatia.

Quando se concebe uma atividade que requer um procedimento particular que pode ser cumprido só mediante a conduta acertada de quem o realiza, é a natureza da atividade e da conduta acertada que o realiza o que define a ordem e a precisão do que se faz, não um líder. A história cultural da era pós-moderna nos mostra que se se quer obter a conduta acertada mediante o operar de uma liderança, cedo ou tarde as exigências e restrição reflexiva que isto implica levam à queixa, à apatia e à dor: a liderança deixa de ser efetiva, pois as pessoas querem ser responsáveis pelo que fazem. Mas esta história nos mostra, também, que é o renascer da reflexão e da ação éticas a partir da dor e do sofrimento da era pós-moderna que nos leva à era ‘pós-pós-moderna’. Ao trazer consigo a presença integral do ser humano, abre a passagem para a colaboração, através da autonomia reflexiva e de ação na co-inspiração de qualquer projeto comum. É a isto que nos referimos quando falamos do fim da liderança no nascimento da colaboração na co-inspiração.

Propomos reconhecer, dito de outro modo, que no presente vivemos a mudança de consciência que leva ao fim da liderança e ao começo intencional da gerência co-inspirativa. A colaboração ocorre quando o que se faz com os outros se faz com prazer de fazê-lo, e se vive, portanto, através da autonomia reflexiva e da liberdade de ação. E através da colaboração com a co-inspiração ou, o se inspirar com outros, ante uma atividade em um espaço psíquico de respeito, confiança, que nos dá segurança e expande nosso fazer inteligente e criativo. Esta co-inspiração ocorre quando através do prazer da colaboração se concebe e gera um projeto que surge em comum porque todos os que participam dele agem vivendo o âmbito de coerências operacionais de sua realização como um espaço de ação e reflexão que lhes entrega respeito, autonomia, responsabilidade e liberdade reflexiva, qualquer que seja sua atividade. A colaboração e a co-inspiração são espaços psíquicos que constituem âmbitos de convivência no fazer e no refletir onde a seriedade, a responsabilidade, a eficiência e a qualidade do que se faz, seja sozinho ou com outros, surge da consciência de que cada um sabe que faz o que faz porque quer fazer, e sabe que o que faz tem sentido para ele ou ela porque participou de alguma maneira em sua gestação. Enfim, a colaboração e a co-inspiração não são possíveis na liderança (qualquer que seja sua denominação), porque o espaço psíquico deste implica sempre a negação de si mesmo na perda da autonomia reflexiva e de ação.

A liderança, qualquer que seja seu começo, ocorre na coordenação da obediência e da submissão; por isso o transitório que resulta sua efetividade. Ao se restringir a autonomia de reflexão e de ação no espaço psíquico que surge com a liderança, restringem-se a criatividade e os desejos de participar, pois se restringe a inspiração. Por isto, ao se abrir o espaço da convivência ética na atividade empresarial com a emergência da era ‘pós-pós-moderna’, a liderança desaparece. E ao desaparecer a liderança, abre-se o espaço psíquico em que é possível criar o que estamos chamando a Gerência Co-inspirativa. Como a forma de guiar a coordenação das atividades e reflexões em qualquer campo produtivo, com conversações de coordenação dos desejos e a vontade de fazer o que se sabe fazer nesse campo, e de estar disposto a aprender o que não se sabe. A gerência co-inspirativa se funda no mútuo respeito e na consciência de que as pessoas através do respeito por si mesmas querem tornar responsável e seriamente o que sabem fazer, e querem aprender também responsável e seriamente o que não sabem fazer porque através do respeito por si mesmas querem cumprir seus compromissos.

Todos nós preferimos colaborar a obedecer; todos nós preferimos ter presença no que fazemos a ser meros peões profissionais; todos nós preferimos ser autônomos e reflexivos em nosso quefazer através do entendimento de sua natureza e seu significado, e assim ser pessoas participantes em um projeto comum, a ser subordinados robóticos. Todos nós desejamos que nosso fazer seja distinguido como uma atividade impecável. A liderança se acaba porque ao negar a autonomia reflexiva das pessoas nega os fundamentos da conduta responsável, e logo fracassa em sua tentativa de obter qualidade e eficiência na atividade acertada de qualquer âmbito produtivo. Assim seu fim ocorre através da alma dos “liderados” ante sua urgência psíquica e operacional por recuperar a reflexão e a ação éticas como aspectos centrais da convivência profissional. Com o fim da liderança e o começo da gerência co-inspirativa, recupera-se a seriedade na atividade através da consciência de que se sabe que se sabe o que se sabe. E na tranqüilidade de que um conviver no mútuo respeito permite dizer “não sei” sem medo de um castigo, porque se sabe que o que não se sabe pode ser aprendido e se quer aprender.

Na gerência co-inspirativa se sabe que os erros não são mentiras, e se sabe também que seu reconhecimento abre os espaços reflexivos que levam a mudar as circunstâncias que deram origem aos erros. Em um mundo mutante haverá erros, e haverá conhecimentos que ficarão obsoletos, mas a conduta inteligente, e a contínua abertura à reflexão que corrige os erros e expande a conduta criativa oportuna que o mútuo respeito traz consigo, nunca ficarão obsoletos. Quando em um mundo que se vive como um presente em contínua mudança, convivemos sem medo do erro ou da equivocação, em um espaço psíquico aberto ao mesmo tempo à reflexão e às conversações colaborativas, vivemos nossa‘sensorialidade’ mutante na serenidade e na segurança, sem ansiedades ou angústias. Isto é, vivemos no espaço emocional de harmonia psíquica e corporal que chamamos bem-estar. E isto não é trivial, pois as emoções como domínios relacionais são o fundamento de toda nossa atividade.

Os três pilares da conduta social responsável espontânea.

Nós, seres vivos, deslizamo-nos no viver em uma contínua deriva estrutural e relacional em um curso que se constitui instante a instante através da conservação da ‘sensorialidade’ do bem-estar no fluir de nosso fazer e nosso sentir relacional, ao fazer em cada instante o que queremos fazer. É por isto que o curso que segue nosso viver não surge guiado pela razão e sim por nossas emoções, nossas preferências, nossos vícios, nossos desejos… nossa vontade, que são, além disso, o que de fato fundamenta nossa escolha das razões ou motivos com que justificamos o que fazemos em qualquer domínio de nosso viver, quando pensamos que temos que justificá-lo. E é por isto mesmo que, se queremos compreender as alegrias, as dores, as harmonias e os conflitos de nosso presente, devemos olhar o curso do fluir do emocionar que guiou o devir de nosso viver ao longo de nossa história. Que resultou no modo que estamos vivendo o que estamos vivendo no presente que agora vivemos.

Isto é, o querer obter o que se deseja através do vício pelo lucro, pelo poder, ou por ambos, o que guiou momento a momento nossa busca de saber e a orientação do que fazemos com esse saber na era pós-moderna. Ou, dito de um modo mais direto, é o que a atividade empresarial e produtiva na era pós-moderna tenha se centralizado no apego ao lucro e ao poder como guias do uso do saber que os torna possíveis, o que gerou as imensas dores, sofrimentos e iniqüidades que vivemos atualmente na ‘antroposfera’e na biosfera. Mais ainda, é precisamente porque são nossas emoções que guiam o curso de nosso viver, que agora é a consciência da dor e do sofrimento que geramos, através dos apegos ao lucro e ao poder, na era pós-moderna, o que nos projeta para a era ‘pós-pós-moderna’. E nos leva ao ressurgimento da consciência ética no viver cotidiano que inicia o fim da liderança.

Isto é, é a mudança de substrato epistemológico que ocorre em nosso viver relacional quando nos tornamos conscientes de que sabemos que sabemos que a dor e o sofrimento da era pós-moderna foram gerados por nós mesmos com nossos apegos ao lucro e ao poder, o que faz surgir a era ‘pós-pós-moderna’. E é esta mudança de consciência o que torna possível que nós, seres humanos, reapareçamos ante nós mesmos percebendo que somos seres biologicamente amorosos, e de que somos desde nossas origens como Homo sapiens-amans amans há mais de três milhões de anos.

Como dissemos acima, “a era ‘pós-pós-moderna’ é a era onde somos conscientes de que se não agirmos de acordo com o que sabemos que sabemos, mentimos a nós mesmos, ao mesmo tempo em que mentimos a outros, inclusive a nossos filhos e aos filhos de nossos filhos”. Sabemos da dor e sofrimento que geramos no vício pela onipotência da era pós-moderna e não queremos fingir mais que não o sabemos.

Quando se sabe que se sabe, não se pode fingir que não se sabe. E sabe-se que mente quando se finge que não se sabe.

O saber que sabemos que não queremos seguir imersos na psique da onipotência da era pós-moderna constitui o estado de consciência no que “percebo que já não sou nem somos cegos ao suceder desta era”. E este perceber é o que gera a mudança de consciência dando origem ao surgimento da era  ‘pós-pós-moderna’e torna possível que nos eduquemos em nosso viver cotidiano no operar ético que se fundamenta no que chamamos os três pilares da conduta ética espontânea ou os três pilares da conduta social responsável. Estes três pilares são o saber, o compreender, e o ter à mão uma ação adequada para a circunstância que se vive, e constituem o fundamento de onde surge nosso agir ético espontâneo nas distintas encruzilhadas relacionais em que temos que escolher o que fazer no âmbito de nossa convivência social.

O saber se refere ao perceber a natureza da encruzilhada social e ecológica que se vive e das ações entre as quais se deve escolher; o compreender se refere ao perceber as distintas conseqüências sociais e ecológicas (visão sistêmica) que teriam na ‘antroposfera’ e na biosfera as distintas ações entre as quais se deve escolher; e o ter uma ação adequada à mão se refere a dispor dos meios (tê-los à mão) adequados para realizar as ações escolhidas.

Quando não se sabe há cegueira e não há consciência de que se requer agir.

Quando não se compreende de que se trata o que se sabe não há possibilidade de conceber uma ação adequada para a encruzilhada social e ecológica que se vive.

E quando não há ação adequada à mão, quando não se dispõe de uma atividade oportuna, há paralisia, depressão, abandono, raiva e indignação.

Se se sabe qual é a encruzilhada relacional social e ecológica que se vive na ‘antroposfera’. E se sabe quais são as ações possíveis, se são compreendidas as possíveis conseqüências na ‘antroposfera’ e na biosfera de escolher uma ou outra dessas ações possíveis. E se se tem a ação adequada (ética) à mão, não é possível não escolher a conduta social responsável sem agir de má fé.

Ao surgir a era ‘pós-pós-moderna’, a compreensão do operar dos três pilares da conduta social responsável faz destes uma oportunidade reflexiva para pôr como o fundamento de qualquer atividade empresarial a inspiração ética, primeiro de maneira intencional e depois de maneira espontânea no mútuo respeito de uma convivência humana no bem-estar. Em outras palavras, o novo olhar e sentir que emerge com o substrato epistemológico que recupera a visão ética no viver cotidiano. E traz consigo o surgimento da gerência co-inspirativa junto com o fim da liderança ao passar à era ‘pós-pós-moderna’, implica pôr como elemento reflexivo e operacional básico em todas as atividades do âmbito produtivo a reflexão e a ação ética. Já não será o primário na atividade empresarial as vantagens econômicas como se estas fossem um bem em si, mas que agora o centro será o bem-estar em todas as dimensões do conviver social humano que a contém e torna possível.

Dissemos que, no começo da era ‘pós-pós-moderna’, os seres humanos se encontram criadores de uma atividade produtiva empresarial que foi e ainda é geradora de uma ‘antroposfera’destrutiva das condições que tornam possível a existência e conservação da biosfera. Biosfera como um habitar no qual os seres humanos podem viver em coerência sistêmica com os outros seres vivos da Terra no bem-estar ecológico e ético.

Ao mesmo tempo dissemos que ao expandir nosso olhar vemos o contexto em que ocorre nosso viver ao mesmo tempo em que nossa participação na geração desse ocorrer. Ocorrer que não gostamos.

E mais, nesse ver, vemos a dinâmica recursiva das conseqüências do que fazemos ou não fazemos. E ao ver que somos geradores dos mundos que vivemos através de nosso fazer (e não fazer) vemos também as conseqüências que isto tem em todas as dimensões do habitar dos outros seres vivos com quem compartilhamos e co-criamos a biosfera que nos torna possíveis. Enfim, ao expandir nosso olhar vemos que somos responsáveis pelo surgimento: de tudo o que é bom e de tudo o que é mau em nosso viver. Ao sermos geradores através do que fazemos, seja com nossas mãos, com nosso pensar, com nosso teorizar e com nosso explicar, de todas as dimensões de todos os mundos que vivemos. Não importam as circunstâncias em que vivemos nosso viver, os seres humanos são criadores, e por isso são responsáveis. Tanto pelo que fazem em sua vida doméstica como nos múltiplos mundos que vivem através de seu fazer filosofia, arte, religião, ciência, ou tecnologia como distintos modos de habitar humano.

Contudo, neste mesmo olhar percebemos também que nossas atividades produtivas empresariais não têm por que ser destrutivas das condições que tornam possível nosso habitar como um habitar ético e socialmente responsável. Se não queremos que seja assim, pois possuímos todas as capacidades e os conhecimentos para fazer tudo o que fazemos gerando uma ‘antroposfera’ em equidade e bem-estar no mútuo respeito abandonando nossos apegos ao lucro e ao poder.

Com efeito, como também dissemos no início, “vivemos um momento em nosso devir histórico no que nos encontramos podendo fazer tudo o que imaginarmos se operarmos com as coerências operacionais do âmbito relacional e operacional em que o imaginamos”. E é talvez por isto mesmo que também agora ao perceber nossa responsabilidade total na contínua transformação do habitar que geramos, nós nos perguntamos “o que fazer?” e nos perguntamos “o que fazer?” porque a dor e o sofrimento que geramos em nosso apego ao lucro e ao poder é tão grande que se manifesta recursivamente também no viver de nossos filhos, de nossos amigos e em nossa dignidade, tanto que começamos a perceber que não queremos mentir nem nos mentir mais porque já não podemos continuar fingindo que não sabemos que sabemos o que sabemos. E é neste momento, no momento em que percebemos  que já não queremos nos mentir mais, quando começamos a passar à era  ‘pós-pós-moderna’ ao nos perguntar “o que fazer para sair da armadilha que nós mesmos nos criamos?”; “como sair de um modo de conviver no que estamos dispostos a aceitar qualquer coisa sempre que conservemos nossos apegos ao lucro e ao poder?”

Sabemos que sabemos que podemos fazer qualquer coisa que queremos fazer se quisermos fazer; e sabemos que sabemos que se queremos fazer podemos entrar na busca ou no projeto intencional do fazer adequado ao que nosso saber e nosso entender e compreender nos indicam. Isto é, se queremos podemos conceber um operar de reflexão e ação ética em nossa atividade empresarial que nos permita sair da armadilha autodestrutiva que nós mesmos geramos na era pós-moderna através do apego à onipotência. Se quisermos podemos criar juntos um conviver no que seja conservado através do respeito por nós mesmos o respeito pela diversidade, pela estética e pelo prazer da amizade na co-inspiração da criação de um conviver no bem-estar sem buscar a perfeição.

Esta é a grande oportunidade da atividade empresarial na era ‘pós-pós-moderna’. O dinheiro como energia, e o conhecimento como capacidade de ação, são dons divinos e não demoníacos se não entrarmos nas tentações do apego à onipotência.

Se nos encontramos no apego à onipotência, toda nossa criatividade, toda nossa inovação, fluirá em torno da conservação do poder a qualquer preço. E nossa empresa ficará cega a tudo que não contribuir com essa ambição. A ética, as considerações sobre dano ecológico, da saúde e da estética do viver serão dispensáveis. A fraude, as drogas, a contaminação, assim como a mentira, mesmo que dissermos o contrário, serão aceitáveis. Enfim, tudo o que não contribuir diretamente para o nosso apego à onipotência será caro e difícil, ou diremos que não existem nem os conhecimentos nem as tecnologias necessárias, mesmo sabendo que temos capacidade para fazer qualquer coisa se quisermos. Se nos encontramos no apego pelo poder, tudo o que não parecer conduzir à submissão de outros será debilidade, assim toda nossa criatividade, toda nossa inovação fluirá em torno da conservação do poder a qualquer custo, e nossa vida ficará cega a tudo o que não contribuir para o aumento de nosso poder; a ética, as considerações sobre dano ecológico ou de saúde, a dignidade, a vida humana, serão dispensáveis, a fraude, as drogas, a vingança, a manipulação e a mentira, mesmo que dissermos o contrário, serão oportunidades aceitáveis para satisfazer nossa busca de onipotência. Enfim, tudo o que não nos levar à onipotência e ao poder será indesejável, difícil e ameaçador, e criaremos teorias que nos justificando nos desejos de onipotência e de poder nos ceguem ante o dano que geramos através desses apegos.

Ao sair do apego à onipotência, da era pós-moderna, e ao se iniciar com ele a era ‘pós-pós-moderna’, percebemos que somos nós mesmos quem geramos a dor e o sofrimento que vivemos na‘antroposfera’ e na biosfera. E como em um despertar nos encontramos abandonando os apegos ao lucro e ao poder no emergir de nossa consciência ética em nosso conviver cotidiano.

Como acontece?

Este surgir de nossa consciência ética é possível porque somos biologicamente seres a quem comove a dor e o sofrimento de outros porque vêem a si mesmos neles, a menos que sem saber neguemos validade a esse ver movidos por um argumento racional que pretende justificar algum apego. As eras, moderna, pós-moderna e ‘pós-pós-moderna’, de que falamos são, como distintos momentos históricos do conviver humano, distintos espaços psíquicos, distintos modos de sentir e agir relacional, distintos substratos epistemológicos de onde vivemos nosso viver.

No fluir de nosso devir histórico entramos e saímos dos distintos espaços psíquicos que vivemos  através de uma mudança de consciência que emerge a partir de uma mudança emocional que como uma mudança de entendimento e compreensão do viver que vivemos nos avassala e abre ou fecha nosso olhar reflexivo no âmbito da conduta ética. Mesmo quando as mudanças de consciência que vivemos nos acontecem de maneira espontânea e não intencional, é possível facilitar aqueles que ampliam nossa consciência ética com um processo reflexivo. Que nos permita perceber que somos nós mesmos os forjadores da dor e sofrimento que geramos a outros e a nós mesmos no apego à onipotência da era pós-moderna, e que, portanto podemos sair dessa armadilha psíquica que nos leva à nossa própria destruição.

O que fazer se estamos habituados a exigir e a obedecer, a cair na apatia ou na queixa da não participação, e a mentir por causa do medo de ser castigados?

Falamos do apego à onipotência e ao poder como dimensões emocionais centrais da era pós-moderna, e fizemos isso fazendo referência principalmente à atividade produtiva empresarial, porque esta atividade se converteu em uma dinâmica transformadora e conservadora enorme que se tornou central realização dos processos da ‘antroposfera’, e através desta, da biosfera. Isto, entretanto, não quer dizer que a onipotência e o poder sejam apegos constitutivos da atividade produtiva empresarial, não são. Esses são apegos próprios da cultura patriarcal-matriarcal que atualmente se estendeu por todos os continentes desde sua origem há uns quinze mil anos atrás na Ásia Central. Nossos meninos e meninas aprendem conosco, os adultos, quem como membros de nossa cultura patriarcal-matriarcal os praticamos em todos os aspectos de nosso conviver, e em particular nos âmbitos produtivos. Este último é assim porque na cultura patriarcal-matriarcal se pensa que a única coisa que pode assegurar ordem, concerto e eficiência em uma atividade que implica a participação de muitas pessoas é a autoridade (liderança) e a obediência.

Mas agora sabemos que isto não acontece. A liderança não gera a ordem, o concerto, a qualidade e a eficiência que promete, e se por um certo tempo parecesse que o faz, não é pela liderança e sim que como resultados das oportunidades acessórias que se abrem apesar dele para que surjam relações de amizade e com elas o desejo genuíno de colaborar. Enfim, também sucede que surgem autoridades secundárias que sob a proteção consciente ou inconsciente de uma autoridade maior obtêm o que parece ser maior efetividade através da manipulação do medo. Ninguém gosta de obedecer, ninguém gosta de ser negado.

Quem gosta de agir de maneira irresponsável perante um acordo adotado com honestidade em um domínio de mútuo respeito? A negação que implica a obediência gera ressentimento e apatia. Como fazer?

A história dos seres vivos em geral, e dos seres humanos em particular, transcorreu e transcorre como um devir que segue primariamente um curso inconsciente que se constitui instante a instante através da ‘sensorialidade’ que conserva o viver do organismo como um estar em cada instante conforme com o viver psíquico e fisiológico que se vive nesse instante. Ao falar de bem-estar conotamos esse sentir de conformidade relacional e de harmonia sensorial que um organismo vive de maneira inconsciente ou consciente no fluir de seu viver em qualquer circunstância de conservação de seu viver. Quando o organismo sente que está perdendo essa harmonia sensorial, sua dinâmica sensorial e motora muda para uma dinâmica conservadora e recuperadora dessa harmonia sensorial. Isto é, vivemos a ‘sensorialidade’ do bem-estar como um equilibrista vive a ‘sensorialidade’ do equilíbrio, movendo-se de maneira consciente ou inconsciente para recuperá-lo quando sente que o perde. Do mesmo modo como o equilibrista conserva a ‘sensorialidade’ do equilíbrio mudando sua ‘corporalidade’ e sua relação com seu entorno mutante enquanto caminha pela corda bamba, o ser vivo conserva a ‘sensorialidade’ do bem-estar mudando sua ‘corporalidade’ e sua relação com seu entorno mutante enquanto realiza seu viver, qualquer que seja este. Um organismo conserva o bem-estar em seu viver como uma relação invariante de congruência operacional com seu nicho ou circunstância, enquanto a forma em que essa relação se realiza muda continuamente no curso de seu viver. Isto ocorre do mesmo modo em que um equilibrista conserva seu equilíbrio como uma relação invariante de congruência operacional com sua circunstância enquanto sua forma corporal muda continuamente ao caminhar sem cair sobre a corda bamba.

Cada ser vivo vive a realização de seu viver como um ocorrer de mudanças estruturais e relacionais que seguem um curso definido momento a momento através da conservação do bem-estar na realização de seu viver. A conservação do bem-estar define em cada instante a orientação relacional e operacional que segue do viver de um ser vivo. As distintas classes de seres vivos vivem de maneiras diferentes a conservação básica do bem-estar conforme for seu modo de viver.

Assim, em nosso caso, o fluir de nosso viver como seres humanos inclui nosso operar em redes de conversações de ação e reflexão. Nas quais podemos olhar nossos sentires e modular recursivamente instante a instante a orientação que segue nosso viver na conservação de nosso bem-estar, dependendo de como nos sentimos com nosso sentir em cada instante [12]. Isto é, é através da contínua modulação de nossos sentires que ocorre instante a instante como um aspecto central do curso de nosso viver em conversações de reflexão e ação, que a forma relacional do que constitui nosso bem-estar muda em cada instante conforme o que sentimos, pensamos e desejamos em relação aos mundos que geramos com nosso viver.

Disto resulta que sempre nos deslizamos em nosso viver na conservação da sensorialidade do que vivemos como nosso bem-estar mesmo quando vivamos nosso presente com dor e como algo indesejável. Sempre fazemos em cada instante o que sentimos ser o fazer que conserve nosso bem-estar nesse instante. De fato a mudança de configuração dos sentires que constituem o bem-estar de um organismo muda com o fluir do viver em todos os seres vivos com ou sem ‘linguagear’ como resultado de sua contínua mudança estrutural no curso de sua epigênese. O peculiar humano é que em nós nossa epigênese ocorre em redes de conversações que constituem a ‘antroposfera’ como o espaço relacional e inter-relacional no que se conserva nosso viver e conviver na conservação de nosso acoplamento estrutural na biosfera [13].


Enfim, são nossos fundamentos biológicos no fluir de nosso viver na conservação do bem-estar os que nos oferecem o caminho fora da armadilha dos apegos da cultura patriarcal matriarcal através do próprio centro da atividade produtiva empresarial. Isto ocorre quando o olhar reflexivo que nos abre à compreensão da dor que geramos através do apego pela onipotência de nossa atividade empresarial patriarcal-matriarcal desloca nosso sentir e a configuração relacional da conservação do bem-estar em nosso conviver, levando-nos a agir através da nova consciência e postura epistemológica que essa compreensão implica. É a isto ao que nos referimos ao mostrar o fim da liderança e propor a gerência co-inspirativa em troca como a forma de pôr a reflexão e ação ética como fundamentos de tudo o que fazemos na ‘antroposfera’.


O que chamamos de gerência co-inspirativa é a arte e ciência do escutar, do ver, e do convidar a agir através do saber e compreender que somos e como somos geradores dos mundos que vivemos, conscientes de que nossos saberes são apenas instrumentos para fazer o que queremos fazer. Os seres humanos gostam de colaborar. Gostam de participar. Gostam de fazer bem o que fazem. Gostam de cumprir seus acordos. Gostam de ter presença no que fazem. Todos nós sabemos como experiência de nosso próprio viver, sós ou com outros, que o ser visto, o ser escutado, o participar em um conviver fundado na confiança mútua, isto é, no amar, expande nossa conduta criativa, expande nossa conduta inteligente, expande nosso ver, nosso ouvir, e expande o desejo de ser impecável na qualidade do que fazemos, em qualquer domínio. E não só sabemos isso, como queremos viver assim porque nos faz bem em todas as dimensões de nosso viver.

A história dos seres vivos transcorreu em um devir de contínua mudança em torno da conservação do viver. Por que não poderíamos nós, os seres humanos, gerar uma história cultural de contínua mudança em torno da conservação do bem-estar no respeito mútuo e a co-inspiração reflexiva que leva a conservar esse conviver e a corrigir os erros que nos afastam dele em todas as redes de conversações que gerarmos?

Vivemos gerando continuamente uma ‘antroposfera’ mutante que surge com nossos fazeres cotidianos em redes de conversações. Tudo o que fazemos, como seres vivos humanos, fazemos em redes de conversações, domésticas, tecnológicas, científicas, filosóficas, artísticas, de colheita ou de cultivo de alimentos,… e fazemos isso como os castores, as formigas fazem… ou qualquer ser vivo em um curso evolutivo gerador de diversidades em torno da conservação do viver.

O único peculiar de nosso fazer é que o fazemos como um fazer humano em redes de conversações sendo conscientes ou com a possibilidade de ser conscientes do que fazemos. Então, por que no fazer o que fazemos, em uma co-inspiração recursiva, em torno da conservação do bem-estar de um conviver no mútuo respeito, onde se tem presença e participação, através da realização cotidiana desse projeto comum? Por que não decidimos operar com nossas empresas pondo no centro de nossa atividade a reflexão e ação ética conscientes dos três pilares da conduta social responsável?

Difícil, caro? Tememos perder privilégios, riquezas, vantagens que satisfazem nossa sede de onipotência? Sim, mas sabemos que sabemos que geramos dano e sofrimento em nossa ‘antroposfera’. E sabemos que sabemos que vivemos um presente histórico no qual podemos fazer qualquer coisa que quisermos fazer se o quisermos fazer. Inclusive sabemos que podemos ser empresários éticos capazes de agir com consciência social.

Que teoria, que justificativa racional nos detém e nos leva a não querer colocar no centro de todo nosso fazer a reflexão e ação ética como um aspecto natural de nosso conviver?

Como queremos ser recordados por nossos filhos, filhas e netos ou netas? Como queremos ser recordados por nossos concidadãos?

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